Tudo o que vai por Ubatuba. Uma cidade diferente...

Tuesday, April 29, 2008

Reflexões

Vida atribulada de cão

Meu cachorro está estressado. Sua preciosa ração vem sofrendo ameaças. Durante o dia são bem-te-vis, pardais e saíras que não param de atacar as preciosas rosquinhas. À noite gambás e ratos silvestres se encarregam de interromper o sono e os sonhos do bom Brasil. (Meu cachorro se chama Brasil!) Ele faz o que pode, avança célere, mas não tem logrado êxito. Com moscas sim. É um exímio caçador, não há um só dia que eu não o veja dando botes certeiros. Plac! As mandíbulas se fecham e a mosca vai ao encontro de São Pedro prestar contas. Se foi boa terá a eternidade no Paraíso, lotado de carcaças putrefatas e repolhos em decomposição. Caso tenha pecado contra a castidade sua derradeira morada será o Inferno, lugar limpinho com borrifadores de detefon lançando jatos a cada trinta segundos. Os ratos silvestres são mais comportados do que as ratazanas urbanas. Dizem que em São Paulo há quatro ratos por habitante, o que perfaz uma alentada população de roedores de 60 milhões de indivíduos. Supondo que cada rato coma 10 gramas por dia, a rataiada consome 600 toneladas de alimentos a cada 24 horas. Acho que o governo deveria capturar e exportar esses ratos para a China. Eles saberiam o que fazer com eles, quem sabe ratos laqueados. Antigamente havia os caçadores de ratos. Eu achava que eram os homens mais importantes do país, no mesmo nível de Getúlio, Café Filho e Falcão Negro. Na minha rua aparecia de tempos em tempos um deles, sempre impecável de roupa caqui e boné de legionário. Espalhava armadilhas pelos terrenos baldios e ficava de cócoras fumando um cigarrinho de palha enrolado cuidadosamente. Depois de algumas horas recolhia os ratos em uma caixa de madeira que levava a tiracolo e partia com sorriso de vencedor, estilo homem de Marlboro. Eu queria ser caçador de ratos, mas minha mãe não aprovou. Ela disse que eu ia ser médico. Ou contador. Acabei virando contador. De histórias. Mães não erram...


Sidney Borges

Friday, April 18, 2008

Casos de consultório

Visão fugaz do Paraíso

Era um dia normal de atendimento na Santa Casa de Ilhabela, eu fazia uma visita a um paciente recém operado e presenciei um diálogo na enfermaria que vale à pena ser contado.
Em um dos leitos havia um homem de idade avançada, internado em estado de coma por diabetes. Medicado e recebendo todos os cuidados necessários, em certos momentos o coma se tornava superficial e o paciente voltava à consciência. Num desses instantes veio a pergunta clássica de quem acorda em lugar estranho:
- “Onde estou?”
O acompanhante, membro da família, visivelmente cansado da indagação recorrente respondeu baixinho, em tom de padre:
- “Você está no Paraíso meu filho...”
O homem ficou espantado e perguntou aflito:
- “Então eu morri?”
A resposta foi imediata:
- “Sim meu filho, você morreu, eu estou lhe reconhecendo. Você não é filho do Baiano?“
Dessa vez o homem pensou um pouco antes de concluir:
- “Você sabe o nome de meu pai, então eu também o estou reconhecendo, você, digo o senhor, deve ser São Pedro, o santo da devoção de meu pai.”
Depois desse diálogo inusitado o paciente entrou novamente em coma aparentando felicidade, com um sorriso nos lábios. A visão celestial deve ter feito bem, o caso praticamente perdido reverteu e dias depois ele foi-se embora imaginando ter conversado com o porteiro do céu. Pelo menos que eu saiba tal encontro ainda não se deu.

Ricardo Cortes

Friday, April 11, 2008

Luiz Inácio falou

Sobre o 3º mandato

- As pessoas que estão preocupadas com o terceiro mandato são as pessoas que não achavam ruim quando os militares ficaram 23 anos no poder. E são as pessoas que aprovaram a reeleição.

- Oito anos na presidência de um país é tempo suficiente para a gente executar um programa de governo. Sou contra o terceiro mandato porque a democracia é um valor incomensurável com o qual não podemos brincar. E a alternância de poder é uma coisa extremamente saudável para o país.

- Qualquer pessoa que se ache imprescindível começa a colocar riscos à democracia. Pobre do governante que começa a achar que é insubstituível ou imprescindível. Está nascendo, dentro dele, uma pequena porção de autoritarismo ou de prepotência. E isso eu não carrego na minha bagagem política. (Lula na Holanda)

Casos de consultório

Amizade sincera

Localizada a 25 km da Ilha de São Sebastião, a Ilha de Búzios é um verdadeiro paraíso para os praticantes de mergulho. Não é difícil avistar golfinhos, tartarugas e baleias passeando na área, também pródiga em peixes e lagostas que vivem nas tocas entre as pedras. A água límpida e a fauna marinha garantem belos visuais. Nesse recanto preservado de nosso litoral vivem famílias de pescadores em um ambiente quase isolado do mundo que conhecemos.Há mais de vinte anos, quando eu era médico em Ilhabela participei de diversas expedições à Ilha de Búzios, cuja finalidade era dar atendimentos variados à população, desde vacinação das crianças contra a pólio à vacinação de cães contra a raiva. No barco iam médicos, paramédicos e enfermeiros e ao chegarmos a vila ficava em festa. Onde quase nada acontece qualquer alteração da rotina vira um grande acontecimento.Em uma dessa visitas, bati à porta de uma casinha na areia, construída em meio a árvores e pedras que a protegiam dos ventos. Coberta de sapé e cercada por uma mureta baixa de bambu me fez imaginar que o projeto devia remontar ao período neolítico. Sem contato e intercâmbio as coisas não mudam.Depois de bater palmas algumas vezes fui atendido por um homem de idade indefinida, mas seguramente entrado nos anos. Ao me ver vestido de branco ele ficou surpreso e antes que dissesse alguma coisa eu me adiantei:
- O senhor tem cachorro?
- Tem sim.
- Eu vou aplicar uma vacina nele?
- Vacina pra quê?
- Contra a raiva.
- Não bai não. Olha ele ali deitadinho tomando sol. Maruj é mansinho, está comigo há dez anos e nunca mordeu ninguém. Como ele pode ter raiva?
Tentei argumentar, mas foi inútil, enquanto conversávamos Maruj acordou e veio participar abanando o rabo satisfeito, era de fato muito simpático e só foi vacinado na outra visita, quando o dono estava pescando.
Anos depois atendi o velho pescador em Ilhabela. Lembrei-me do caso e perguntei do Maruj. Os olhos dele se encheram de lágrimas, o amigo tinha partido há um mês. Viveu vinte anos sem jamais ter sentido raiva.

Ricardo Cortes

Casos de consultório

Improvisando

Um provérbio popular me veio à cabeça naquele dia longínquo da década de 1980, para ser mais preciso corria o ano santo de 1985. Quem não tem cão caça com gato. Quem não ouviu tal aforismo ao longo da vida? Pois foi algo parecido que ocorreu a um simpaticíssimo senhor caiçara da Ilhabela no dia ao qual me referi no início deste texto.Primeiramente devo me apresentar, sou médico, meu nome é Ricardo Cortes e eu estava de plantão na Santa Casa de Ilhabela em um dia calmo do mês de maio, quando quase não há turistas e as noites são estreladas e frias. Pouco movimento, situação ideal para ler um livro policial, especialmente para mim que sou legista.Eu estava em meu consultório e em certo momento a leitura foi interrompida por uma enfermeira que bateu à porta e entrou com uma ficha na mão:- Um caso especial para o senhor, doutor. Dor de dente. Fechei o livro e fiz a pergunta óbvia:- Não tem dentista na cidade?- Tem, mas é particular. O paciente é pobre. É melhor o senhor dar uma olhada, o homem está chorando.Mandei que entrasse. Era um homem de sessenta e poucos anos transtornado de dor, com a cabeça entre as mãos, acompanhado da mulher muito assustada e bem mais jovem.Examinei o dente, um canino, na boca só havia ele e o outro canino, um vazio desolador. Estava inflamado. Expliquei ao homem que eu ia dar um analgésico para tirar a dor e que ele procurasse um dentista. Não devo ter sido convincente, ele implorou pelo boticão, com tanta veemência que acabei concordando. Tirei o dente e ele foi-se embora satisfeito.Voltei ao livro e quando me preparava para um cochilo fui novamente chamado a atender o mesmo homem. Seu Siqueira, agora meu conhecido. Meio que assoviando com a boca torta ele me disse:- O senhor precisa me fazer um favor doutor. Tirar o dente que sobrou. Estou muito feio com um dente só, minha mulher ficou rindo de mim, ainda está rindo. Por favor doutor, depois eu mando fazer uma chapa.O homem era convincente e teimoso e como um dente só é como uma andorinha sozinha que não faz verão, tirei o último dos moicanos. Ele saiu do hospital feliz, elogiando minha mão leve.Voltei ao consultório e ainda consegui ler o final de “Bufo & Spallanzani”, de Rubem Fonseca, antes de dormir. Naquela noite o plantão foi tranqüilo, ninguém mais precisou de atendimento médico. Ou odontológico.Na manhã seguinte, quando meu horário estava para terminar surgiu em minha frente o velho conhecido seu Siqueira, acompanhado da mulher e de quatro crianças. Assustadas, pois estavam lá para tratar os dentes comigo. Segundo seu Siqueira um ótimo dentista:- Arranca sem dor. E sem muita conversa.

Ricardo Cortes

Wednesday, April 09, 2008

Tibet

Levitação

Na adolescência li O despertar dos mágicos, A terceira visão, de Lobsang Rampa e a trilogia de Herman Hesse, Demian, O lobo da estepe e Siddharta. Nessa época circulava a história de um casal em férias no Rio Grande do Sul. Cansados encostaram o fusca para tirar uma pestana. Ao prosseguir viagem as placas da estrada tinham mudado de idioma, estavam em espanhol. Surpresos entraram na cidade do México pensando que fosse Bento Gonçalves. Constava do relato a compra do fusca pela Nasa. Os viajantes eram amigos do primo de um conhecido e a coisa não ficava por aí, logo alguém contava outra história. Algumas tinham grande conteúdo exotérico. Há quem continue na vida adulta buscando o conhecimento total, o santo graal e a pedra filosofal. Para eles – ingênuos - sempre haverá um Gurdjieff pronto a cobrar pelos ensinamentos. Confesso que cheguei a acreditar na existência de discos voadores, seriam os deuses astronautas? Felizmente a razão se apossou de meu espírito. Se valesse a cultura inútil que acumulei no verdor da existência, os problemas do Tibet não existiriam. Bastaria uma legião de monges levitando para fazer chover canivetes abertos sobre a China. Infelizmente para os crédulos, monges não levitam. E também não trabalham, apenas rezam. Mas comem, ninguém se alimenta de orações.

Sidney Borges